Thomas Merton: como ele os desafia hoje?


artigo de Dom Bernardo Bonowitz, OCSO, Abade
edição de janeiro de 2015

Foi em Oakham, a escola pública inglesa onde havia sido matriculado por um amigo próximo de seu pai (que agia como uma espécie de guardião), que o garoto realmente começou a florescer intelectual e socialmente. Mostrou-se um brilhante jovem estudante, completando um curso, em grande parte organizado por ele mesmo, de línguas e literatura modernas, além do programa prescrito de estudos clássicos. Ele amava o novo e a vanguarda: na literatura, lia obra de escritores como James Joyce (1882-1941), Franz Kafka (1883-1924) e D. H. Lawrence (1885-1930); na música, apreciava o recém-surgido jazz. Ao mesmo tempo, podia ficar completamente absorvido pelo mundo da Antiguidade tardia e da Alta Idade Média, como aconteceu ao descobrir os afrescos nas igrejas de Roma durante uma visita à Cidade Eterna quando era adolescente. Tais afrescos representavam um de seus primeiros contatos com o mundo católico e, de fato, com o cristianismo. Embora houvesse sido batizado quando criança na Igreja Anglicana, recebeu pouca formação religiosa e não tinha qualquer identificação interior com a fé. Quando estava completando o Ensino Médio, Merton sofreu outra tragédia com o falecimento do pai, em decorrência um tumor cerebral.

Merton passou cerca de um ano tumultuado na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e então pediu transferência para a Universidade de Columbia, em Nova York, onde se graduou e concluiu o mestrado em Literatura Inglesa. Nesse período, após um breve namoro com o marxismo, entrou em contato com o catolicismo novamente, em primeiro lugar por meio da leitura das obras do filósofo e historiador Étienne Gilson (1884-1978) e depois (por recomendação de Bramachari, um monge hindu que vivia nos Estados Unidos) estudando clássicos católicos como a Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis (1379-1471) e as Confissões, de Santo Agostinho de Hipona (354-430). Merton foi profundamente influenciado por essas obras e, em seguida, começou a ser instruído para converter-se ao catolicismo, o que veio a ocorrer em 1938. Pouco tempo depois, começou a sentir um apelo insistente ao sacerdócio ou a alguma forma de vida consagrada. Ele pensou nos franciscanos e também na vida com os pobres das grandes cidades na Casa da Amizade em Harlem, fundada pela baronesa Catherine de Hueck Doherty (1896-1985), mas acabou ingressando no mosteiro trapista de Gethsemani, Kentucky, em 1941. Foi ali que conseguiria fazer aquilo para o qual seu coração o impedia: ”abandonar tudo”.

Após a leitura de O signo de Jonas, o diário de Merton sobre seus primeiros anos em Gethsemani após a profissão, é possível perceber quão inteiramente ele se dedicou a sua vocação. Por meio de passagens marcadas por humor, lirismo e sóbria autoanálise (uma amostra de seus múltiplos dons literários), o escritor revela ao leitor a fidelidade, o ardor e a integridade com as quais mergulhou na vida monástica. Merton era um apaixonado e Gethsemani era uma primeira personificação da Divina Sabedoria que ele amaria e buscaria até o fim de sua vida. A sinceridade de sua busca espiritual refulge em cada página dessa obra, assim como suas lutas, seus fracassos e seu questionamento sobre a possibilidade de estar sendo chamado à vida completamente solitária, eremítica, dos cartuxos em vez da vida mais cenobiticamente orientada dos cistercienses trapistas. Mas, sobretudo, estava procurando a pureza de coração que conduz à contemplação, buscando a união com Deus que pode ser experimentada por meio da contemplação em conhecimento escuro, amoroso. Ao longo do caminho, instado por seu superior e com entusiasmo e apreensão, alternadamente, ele continuou a fazer aquilo que melhor sabia: escrever; em 1948, com a publicação da autobiografia espiritual A montanha dos sete patamares (aclamada como a versão moderna das Confissões de Santo Agostinho), tornou-se um autor de best-sellers e uma referência no mundo monástico.

Até o fim dos anos 1950 (se é que se pode datar esses acontecimentos), Merton havia atingido uma verdadeira medida de liberdade interior (pureza de coração) e uma profunda experiência de contemplação. Isso o levou a uma guinada central, todo-transfonnadora, e que em Novas sementes de contemplação ele descreveu como um “paradoxo”: “Um dos paradoxos da vida mística é este: que um homem não pode entrar no centro mais profundo de si mesmo e passar deste centro para Deus, a menos que seja capaz de sair inteiramente de si mesmo, esvaziar-se e dar-se aos outros na pureza de um amor despojado”.

De fato, Merton havia redescoberto a intuição cisterciense fundamental de que contemplação e compaixão são inseparáveis, que unidade com Deus e nossa unidade n'Ele são misteriosamente uma única coisa. O monge nunca voltou atrás de sua descoberta; ao contrário, ela determinava suas atitudes, seu comportamento (e sua oração) pelo restante da vida. Agora que estava convencido de que sua contemplação não era uma possessão pessoal que o distanciava de outras pessoas, mas, antes, que ela pertencia a todos e que implicava uma profunda responsabilidade para com as outras pessoas, passou a buscar maneiras de encarnar aquilo que descobria. Ele deu seu primeiro passo escrevendo cartas para intelectuais e escritores, para homens profundamente espirituais como Boris Pasternak (1890-1960) e Czeslaw Milosz (1911-2004), a fim de expressar sua fraternidade para com eles, para “fazer algo para curar a ruptura imperdoável que surgiu entre a Igreja e o mundo intelectual do nosso tempo” e para aprender deles e com eles como poderia colocar a sua contemplação a serviço da humanidade.

No início dos anos 1960, Merton foi ainda mais além. Ele estava determinado a utilizar seus dons como autor contemplativo para influenciar a consciência da sociedade americana e mundial, assim como também a consciência da Igreja Católica. Para isso, focou diretamente nas questões mais cruciais de seu (e de nosso) tempo: o flagelo da guerra (especialmente a imoralidade das armas nucleares e o longo horror da guerra do Vietnã), a intolerância da injustiça racial e de outras formas de discriminação, a necessidade para a Igreja de deixar para trás sua cristandade confortável e a necessidade de as ordens religiosas identificarem novamente suas verdadeiras metas e providenciarem uma formação espiritual adequada para e consoante com essas metas. Às vezes, ele recebia um “tapa na mão” das autoridades da Ordem (por algum tempo, foi-lhe proibido publicar textos sobre guerra e paz), mas sempre conseguia fazer imprimir seus pontos de vista, mesmo que clandestinamente.

Ao mesmo tempo, Merton iniciou contatos (e estabeleceu amizades duradouras de mútua reverência) com vários líderes religiosos de outras tradições, por exemplo, o filósofo religioso judeu Abraham Joshua Heschel (1907-1972), o pensador ortodoxo russo Sergius Bolshakov, o grande erudito zen D. T. Suzuki (1870-1966), que Merton pode visitar em Nova York, e o Dalai Lama (1935-). Cada vez mais, ele achava fontes de vitalidade nas tradições orientais e igualmente os escritores orientais encontravam nele um espírito afim. Um dos melhores biógrafos de Merton, William Shannon (1927-1988), disse: “Minha impressão é... que Merton não apenas entendia o zen, como também entendia o cristianismo tal como visto pelos olhos de um mestre zen e isto foi um profundo enriquecimento de sua própria fé cristã”.

Todos esses movimentos “para fora” foram acompanhados e nutridos por movimentos “para dentro”. Por vários anos, Merton teve permissão para viver como “semieremita” em Gethsemani. Em 1965, com a eleição do novo abade, ele pode mudar-se definitivamente para seu eremitério. É tocante constatar a simplicidade e a seriedade da rotina que levava durante seus últimos anos em Gethsemani. Achando uma maneira de rezar todo o Ofício Divino monástica e de passar o tempo diariamente em trabalho manual, dedicou longas horas por dia a meditação e à lectio divina.

Em 1968, Merton foi convidado para participar de um congresso monástico em Bangkok. Ele também recebeu permissão para passar vários meses em peregrinação na Ásia antes da abertura do congresso. Esses meses lhe foram excepcionalmente felizes, um tipo de “volta para casa”, de uma nova experiência da Divina Sabedoria. O monge ficou totalmente estupefato com a beleza interior das imagens de Buda que visitou em Polonnaruwa, no Sri Lanka. No dia 10 de dezembro, após ministrar sua conferência no congresso, retirou-se para seu quarto para tornar um banho e descansar. Várias horas depois, foi encontrado morto em seu quarto, aparentemente eletrocutado por um ventilador com a fiação defeituosa.

Como Merton desafia-nos? Em primeiro lugar, pedindo-nos para assumir e perseverar no trabalho preliminar que conduz à contemplação. Precisamos ser libertados do “falso eu” do qual falava com tanta frequência, do eu não cônscio de ser imagem de Deus, do “indivíduo” que tenta fabricar uma identidade para si mesmo em vez de receber uma da copiosa e misericordiosa mão de Deus, do ser humano que só se experimenta como “alguém” ao distanciar-se e opor-se aos demais. Certamente, o falso eu é, em grande parte, o produto das feridas psicológicas oriundas de nossa criação. Mas a tradição cristã, a tradição monástica, possui meios efetivos de curá-las pouco a pouco: oração, lectio divina, direção espiritual, silêncio e solidão. Todas as práticas monásticas, corretamente compreendidas, objetivam a vitória de Deus sobre o falso eu. Merton, sem dúvida, tinha a própria cota de feridas psicológicas, para não falar da morte prematura de ambos os pais e da crueldade despejada sobre ele pela companheira de seu pai. Mas, pela graça de Deus e pela correspondência a essa graça, transcendeu esses ferimentos, ainda que deixando algumas cicatrizes. Minha impressão é que, frequentemente, na vida religiosa, falta uma compreensão daquilo que estamos buscando; há um cansaço e uma carência de generosidade que nos impedem (às vezes por toda a vida) de nos aproximarmos da pureza de coração. Nossos inimigos são a inconstância, a preguiça, o barulho interior e uma intolerância a exposição prolongada àquilo que é genuinamente espiritual.

Em segundo lugar, ele nos desafia, como Jesus desafiou o jovem rico (cf. Lc 18,18-24), e ir e vender tudo, inclusive nosso capital espiritual, a reconhecer que qualquer graça e oração que Deus possa nos dar não é para alimentar nosso “narcisismo espiritual” (uma tentação que Merton claramente reconhecia em si mesmo), mas que os “rendimentos” devem ser dados aos “pobres”, ao mundo, a todos. Trata-se de um grande passo para reconhecer verdadeiramente, como ele, que “minha contemplação pertence a todos”.

Em terceiro lugar, o monge desafia-nos a rejeitar absolutamente a ideia de que a vida espiritual cristã nos dispensa do engajamento nas questões urgentes de nossos tempos e de um compromisso genuíno a participar na sua resolução. A certa altura, durante o retiro de 2013 da Sociedade Thomas Merton no Rio de Janeiro, eu perguntei: “O que é que nós, enquanto contemplativos, vamos fazer acerca do aquecimento global, do tráfico de pessoas, da evaporação dos recursos hídricos em nível mundial, do extremismo religioso, das imensas desigualdades econômicas em todos os países do mundo, da busca de respostas adequadas às questões do aborto, da eutanásia, da teoria de gênero, entre outros temas?” Era bonito ver a preocupação, a seriedade e as lágrimas brilhando nos olhos dos participantes. Eles realmente queriam falar e atuar sobre aquilo. Chegamos inclusive a decidir que esse seria o tema do retiro de 2014, mas então surgiu a celebração do centenário de Thomas Merton. Tenho certeza de que nos mandaria “arregaçar as mangas de novo” após o retiro dedicado a ele e a seus escritos.

E depois? Em uma carta escrita para um jornalista argentino, Merton disse que estava “comprometido, pelas circunstâncias da minha própria vida e histórico familiar, a fazer algo para curar... a ruptura entre a Igreja e o mundo intelectual de nosso tempo”. Nossas circunstâncias e nosso histórico não são idênticos aos dele e, portanto, nossa resposta à nossa descoberta de nossa única humanidade universal e de nossa única responsabilidade universal compartilhada não serão idênticas às suas. Os monges de Atlas responderam a sua descoberta por uma profunda comunhão espiritual com o mundo do Islã e uma determinação em permanecer com o povo que se tornara seu. A bem-aventurada Gabriella Sagheddu (1914-1939), monja trapista italiana do início do século XX, respondeu a sua descoberta da tragédia de uma cristandade dividida oferecendo a própria vida pela unidade dos cristãos.

Santa Teresa de Lisieux (1873-1897) - cuja relíquia Merton tinha consigo ao falecer em Bangkok - respondeu a sua descoberta apropriando-se de ICor 13 e declarando com cada fibra de seu ser: “Eu serei o amor no coração da Igreja, minha Mãe”. A resposta específica depende “das circunstâncias e do histórico” de cada pessoa. Mas a descoberta de nossa humanidade compartilhada deve acontecer se desejamos nos tornar verdadeiramente humanos, devendo suscitar uma resposta que determina o curso do restante de nossas vidas.

Finalmente, Merton desafia-nos a perseverar na paz e na alegria em meio a tudo o que nos é pedido. Não é à toa que, na maioria das fotos, ele está sempre sorrindo matreiramente. Seria esta a expressão do seu rosto ao escrever as palavras em Novas Sementes de Contemplação: “Continua o fato de sermos convidados a esqueçamo-nos de nós mesmos deliberadamente, lançar ao léu nossa horrível solenidade e nos unirmos à dança geral”.

Na tradição do amigo de Merton, o rabi Heschel, há uma expressão que transmite o mais alto louvor que uma pessoa pode dar a outra: “Ele é um verdadeiro mensch”. Um mensch é alguém que é aberto, empático e profundamente intuitivo a tudo do que é humano. No decorrer de seus 53 anos, Merton tornou-se um mensch de verdade. Esse é seu eu mais verdadeiro e seu maior desafio para nós.

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