31 março 2008

'Chesed' roubou-nos tudo

“ Quem é meu próximo? A quem estou ligado? Quem devo amar?

Essas não são perguntas inteligentes e não têm respostas claras. Ao contrário, qualquer tentativa de respondê-las nos envolve em intermináveis sutilezas, coisas vagas e, em última instância, confusão. O amor desconhece classificações. A medida do amor estabelecida por Cristo para nós ultrapassa medidas: temos de ser ‘perfeitos como o Pai do céu é perfeito’. Mas o que significa a ‘perfeição’ do Pai celeste? É imparcialidade, não no sentido de uma justiça que tem igual medida para todos, conhecendo seus méritos, e sim no sentido da chesed, que desconhece classificação de bem e mal, justo e injusto. ‘Pois Ele faz cair a chuva sobre os justos e os injustos’.

Estamos ligados a Deus na chesed. O poder de sua misericórdia apossou-se de nós e não nos deixará: por isto, nos tornamos tolos. Não podemos mais amar com sabedoria. E porque nos despojamos nessa loucura que Ele nos enviou, podemos ser movidos por Sua imprevisível sabedoria de maneira que amamos a quem amamos e ajudamos a quem ajudamos, não conforme os nossos próprios planos, mas segundo a medida estabelecida por nós em Sua vontade oculta, que não conhece medida. Nessa loucura, que é obra do Seu Espírito, devemos amar especialmente os desamparados, que nada podem por nós. Temos também de receber seu amor, conscientes de nosso próprio desamparo e incapacidade de bastar-nos a nós mesmos. Chesed tornou-nos como que rejeitados e pecadores. Chesed inclui-nos entre os estrangeiros e os estranhos; chesed não só nos tirou nossa razão, mas também nos classificou no mesmo plano que todos os demais, aos olhos de Deus. Assim, não temos morada, nem família, nem nicho na sociedade e nenhuma função reconhecível. Nem tampouco damos a impressão de ser especialmente caridosos e não nos podemos orgulhar de nossa virtude. Chesed aparentemente roubou-nos tudo isso, pois aquele que vive apenas segundo a misericórdia de Deus, só por essa misericórdia pode viver e por nada mais. Plenitudo legis esta caritas. A caridade é a plenitude da lei.”

Seasons of Celebration, de Thomas Merton
(Farrar, Straus and Giroux, New York), 1965. p. 180-181
No Brasil: Tempo e Liturgia, (Editora Vozes, Petrópolis), 1968. p. 184-185

Reflexão da semana de 31-03-2008

24 março 2008

A 'chesed' de Deus

“ A chesed* de Deus é uma misericórdia gratuita que não considera mérito, dignidade nem retribuição. É a maneira como o Senhor olha para os culpados e, com Seu olhar, torna-os imediatamente inocentes. Aos que fogem dele, esse olhar parece ira. Quando o contemplam, contudo, vêem que é amor e que eles são inocentes. (Sua fuga e confusão causadas por seu próprio medo os tornam culpados a seus próprios olhos). A chesed de Deus é verdade. É força infalível. É o amor por meio do qual procura e escolhe Seus eleitos e os une a Si. É o amor pelo qual Ele está desposado com a humanidade. Assim, se a humanidade Lhe for infiel, terá ela sempre uma fidelidade à qual voltar: Sua própria fidelidade. Ele se tornou inseparável do homem na chesed que denominamos ‘Encarnação’, ‘Cruz’ e ‘Ressurreição’. Ele também nos deu Sua chesed na Pessoa de seu Espírito. O Paráclito é a plenitude do mistério inefável de chesed. Assim sendo, nas profundezas de nosso ser existe uma fonte inexaurível de misericórdia e de amor. Nosso próprio ser se tornou amor. Nosso próprio ser se tornou o amor de Deus por nós e está cheio de Cristo, de chesed. Mas temos de nos aceitar e aceitar aos outros como chesed.”
* Palavra em hebreu que significa bondade; bondade que vai além do que normalmente seria esperado.

Seasons of Celebration, de Thomas Merton(Farrar, Straus and Giroux, New York), 1965. p. 178-179No Brasil: Tempo e Liturgia, (Editora Vozes, Petrópolis), 1968. p. 182
Reflexão da semana de 24-03-2008

Um pensamento para reflexão: “Temos de ser, para nós mesmos e para os outros, sinais e sacramentos de misericórdia.”
Tempo e Liturgia, Thomas Merton

17 março 2008

Brilhando como o Sol!

Terça-feira 18 de março marca o 50º aniversário da “epifania” de Thomas Merton na esquina das ruas Fourth e Walnut, em Louisville.

“ Em Louisville, em uma esquina de Fourth e Walnut, no centro comercial da cidade, fui subitamente tomado pela consciência de que eu amava todas aquelas pessoas, que eram minhas e eu era delas, que não poderíamos ser estranhos uns aos outros embora fôssemos totalmente desconhecidos (...) Tenho a imensa alegria de ser humano, de pertencer a uma espécie na qual o próprio Deus se encarnou. Como se os pesares e estupidez da condição humana pudessem me esmagar agora que percebo o que todos nós somos. Ah, se todo mundo pudesse dar-se conta disto! Mas isto não pode ser explicado. Não há como dizer às pessoas que todas elas andam pelo mundo brilhando como o sol!”

Conjectures of a Guilty Bystander
, de Thomas Merton
(Doubleday, New York), 1966. p. 173
No Brasil: Reflexões de um espectador culpado, (Editora Vozes, Petrópolis), 1970. p. 181
Reflexão da semana de 17-03-2008

Um pensamento para reflexão
: “Fazer parte da espécie humana é um destino glorioso, mesmo se nossa espécie se dedica a muitos absurdos e comete muitos erros terríveis: apesar de tudo isso, o próprio Deus gloriou-se de vir a fazer parte da espécie humana. Parte da espécie humana! E pensar que essa percepção, que é um lugar comum, pode subitamente parecer uma notícia de que você é o detentor do bilhete que ganhou o primeiro prêmio na loteria cósmica.”
Reflexões de um espectador culpado, Thomas Merton

10 março 2008

Através de outros

“ Devemos procurar Deus em todas as coisas. Não, contudo, como se procura um objeto perdido, uma ‘coisa’. Ele nos está presente em nosso coração, em nossa subjetividade pessoal. Procurá-lo é reconhecer este fato. Mas não podemos ter consciência disto como realidade a não ser que Ele nos revele sua presença. Ele não se revela simplesmente em nosso coração, mas através de outros. Revela-se a nós na Igreja, na comunidade dos que crêem, na koinonia dos que Nele confiam e O amam.

Procurar a Deus não é apenas uma operação do intelecto, nem mesmo uma iluminação contemplativa da mente. Procuramos a Deus esforçando-nos por nos entregarmos a Ele, a quem não vemos, mas que está em todas as coisas, através de todas as coisas e acima de todas as coisas.”
Seasons of Celebration, de Thomas Merton
(Farrar, Straus and Giroux, New York), 1965. p. 115
No Brasil: Tempo e Liturgia, (Editora Vozes, Petrópolis), 1968. p. 224
Reflexão da semana de 10-03-2008

Um pensamento para reflexão
: “Ninguém vive só para si mesmo. Viver só para si é morrer. Crescemos e nossa vida desabrocha na medida em que vivemos para outros e através de outros. O que nos falta, Deus deu a eles. Eles devem nos completar onde somos deficientes. Daí devemos sempre permanecer abertos uns aos outros, de maneira a podermos sempre repartir uns com os outros.”
Tempo e Liturgia, Thomas Merton

03 março 2008

Pessoas doces, boas...

“ Estive em Louisville hoje e jantei com as Irmãzinhas dos Pobres.

A beleza moral do lugar, a autêntica beleza do Cristianismo que não tem igual. A beleza da Igreja é a caridade de suas filhas.

A Madre Superiora, que nunca esquecerei: sua transparência, atmosfera sobrenatural, simplicidade, sem idade, uma criança, uma mãe, como a Santa Virgem – como se nenhum nome pudesse aplicar-se a ela, ou seja, nenhum nome para ninguém, salvo para Deus. Contudo, mais real do que as pessoas irreais no resto do mundo.

Os idosos. O velho tocando piano e o velho dançando - ou antes, girando e batendo um pé no chão, sem perceber que não era mais capaz de movimentar os músculos que teriam permitido um sapateado. E o velho ao piano depois de tocar algo muito mais vivo do que rock 'n roll (embora todo torto).

Os negros idosos: a doce e digna negra que trabalhou para o Padre Greenwell; a velha, cansada, pesada negra, com fiapos de barba branca, mergulhada em seus sonhos, saindo lentamente dele quando lhe dirigem a palavra. A senhora com as duas pernas amputadas. A menininha que fez o discurso na sala de jantar; a senhora com o boné de visor. E o casal das bodas de ouro.

As irmãs, acima de tudo, e as menininhas de uniformes azuis e brancos, as "auxiliares" e suas canções com piano, a viola e o triângulo. Os olhos escuros da menina que vai na quinta-feira ser postulante em Baltimore. Pessoas doces, boas.”

Turning Toward the World,
de Thomas Merton
Editado por Victor A. Kramer
(HarperSanFrancisco, São Francisco) 1997, p. 31-32.
Reflexão da semana de 03-03-2008

Um pensamento para reflexão
: “Agora tenho as orações dos pobres, as orações fortes, misericordiosas, invencíveis dos pobres que estão atrás de mim, e em mim, mudando toda a minha vida e todo o meu olhar sobre a vida.”
Turning Toward the World, Thomas Merton